O que é ser uma pessoa legal? Dentre as inúmeras definições possíveis, gosto de pensar que ser uma pessoa bacana tem a ver com a forma como os outros se sentem quando você sai da sala. Se o sentimento predominante for o alívio, tem alguma coisa errada aí. E vamos combinar, ao ler essa frase, você com certeza pensou em alguém que conhece, não é?
Nos últimos dias, andei bem imersa nessas reflexões ao entrar em contato com seres humanos realmente insuportáveis. Felizmente, no campo do entretenimento e não na vida real.
A primeira é a protagonista de Impostora, novo romance da R. F. Kuang. Juniper Hayward é uma jovem escritora que nunca conseguiu emplacar nenhum grande sucesso. Já sua amiga, Athena Liu, é considerada o grande talento de sua geração. Assistir de camarote Athena recebendo os louros do mercado editorial é uma verdadeira tortura para Juniper. Até que um dia, June presencia a morte horrenda da amiga e acaba, assim, meio “sem querer” roubando um manuscrito. O sucesso vem, mas com ele as consequências de ser uma impostora.
A ficção nos possibilita torcer para personagens cretinos sem ofender (tanto) nossa ética. Se eles apresentarem alguma justificativa que, pelo menos no universo literário, justifique seus atos, e tiverem uma boa dose de carisma, o leitor consegue vencer aquelas páginas e até mesmo criar uma certa empatia. É assim com Heathcliff, Brás Cubas, Scarlett O’Hara e até Holden Caulfield (me perdoem os fãs). O problema é que June Hayward tem o carisma de uma porta fechada e nada, absolutamente nada, pode suavizar a sua inveja, que ao longo da narrativa se transforma em racismo e apropriação cultural. Insuportável como deveria ser, já que não podemos mais passar pano para esse tipo de gente.
E não me entenda mal, a literatura, o cinema e a TV precisam de personagens assim. São eles que geram o conflito necessário para a narrativa avançar. É preciso ter um vilão ou, pelo menos, um personagem de caráter duvidoso. O que seria de Yellowstone se não fosse a Beth, Game of Thrones sem Joffrey Baratheon, ou O Diabo Veste Prada sem Miranda Priestly? Mas a verdade é que ninguém suportaria conviver com essas pessoas no mundo real.
Enquanto eu lia Impostora e tentava não jogar o livro longe quando a narradora se mostrava narcisista e desconectada da realidade, estreou na Globoplay a série documental Pra Sempre Paquitas. Dei o play esperando nostalgia e escapismo, mas o que eu vi foi bem diferente. Mulheres adultas, ali pela faixa dos 40, 50 anos, falando sobre seus traumas de infância/adolescência, todos personificados em uma só pessoa: Marlene Mattos.
Quem viveu essa época não se surpreende. Assim como muitas mulheres de sua geração, ela precisou se masculinizar para chegar a um cargo de liderança e construiu conscientemente a fama de megera que tinha. E não se arrepende nem um pouco, segundo ela mesmo disse em um episódio da série sobre a Xuxa. Consigo entender o contexto, eu mesma trabalhei na TV em meados dos anos 2000 e vi, ao vivo e a cores, que essa era a cultura dominante. Berros, gritos e humilhações públicas faziam parte do modus operandi da produção e, para fazer carreira, era preciso ser altamente resiliente (ou um pouco masoquista).
Marlene Mattos e Juniper Hayward vivem em dois universos diferentes. Uma é personagem fictícia, que nos irrita, mas pode ser silenciada ao fecharmos o livro e o colocarmos de volta na estante. Outra, no entanto, é muito real e o mal que fez reverbera até hoje, mais de 20 anos depois dos abusos. O que elas têm em comum? O absoluto desprezo pelos sentimentos alheios.
Culturalmente, nós mulheres, temos a tendência de pedir desculpas por algo que não fizemos. Somos educadas de forma a agradar ou, no mínimo, passar despercebidas. Sei que a próxima geração já vai ter superado essa dificuldade - e agradeço as minhas amigas mães por isso. Mas saindo um pouco do macro e dando um zoom na nossa vida cotidiana, no convívio íntimo com os outros, será que em algum momento não estamos indo para outro extremo?
Estamos criando a nossa própria forma de liderar (aos outros e a nós mesmas) ou simplesmente repetindo uma fórmula que nos foi imposta? Para alcançar o sucesso profissional, para “chegar lá”, será mesmo preciso deixar um rastro de pessoas traumatizadas? O sucesso se mede pela quantidade de vezes em que você foi assunto na terapia de alguém?
Sim, o mundo do trabalho está mudando, mas não na velocidade que gostaríamos. Em alguns círculos que frequento (boletos, todos temos alguns a pagar), a gentileza é quase cafona. Dedicar parte do seu tempo a ouvir o outro e a modular sua forma de falar é uma “perda de tempo”. Como se o banco subtraísse alguns reais da sua conta a cada vez que você reconhecesse seu colaborador como um ser humano. Mas mesmo em tempos de “Deus me livre mulher CEO”, eu me recuso a acreditar que caminhamos tanto para chegar nesse lugar e reproduzir comportamentos que, há muito, já deviam ter sido superados.
Correndo o risco de soar utópica ou mesmo hiper sensível, proponho uma ideia ousada: que tal deixarmos os babacas para a ficção? O que aconteceria se não déssemos mais espaço para eles nas grandes corporações, na indústria da música, na política? O que aconteceria se abríssemos espaço para quem conhece, verdadeiramente, ver o mundo para além do próprio umbigo?
Curtinhas!
Um texto antigo da
que ressoa até hoje em mim.Como Jane Austen editava seus textos?
Shifting: quando o TikTok inventa um novo termo para “dissociação”.
Há muita violência no segredo.
Sally Rooney no NYT.
Sobre servir de suporte para a escrita, texto delícia da
.O que eu estou lendo?
Durante as minhas miniférias em São Paulo, eu devo ter entrado em umas 7 ou 8 livrarias. Em todas elas, eu procurava Se Deus me chamar não vou, da Mariana Salomão Carrara. De volta ao Rio, fui encontrar, quem diria, aqui na Livraria da Travessa, bem do ladinho da minha casa. Foi amor à primeira página e eu seria capaz de jurar que leria bem rapidinho. Mas que nada. Estou economizando e degustando bem aos poucos a narração de Carmem, uma menina de 11 anos que lembra muito a criança solitária que eu fui um dia. Delícia de livro, recomendo demais!
E não custa lembrar: os livros que eu cito aqui nessa newsletter sempre vêm acompanhados de um link de afiliado da Amazon. Ao comprar qualquer item através desses links, eu ganho uma pequena porcentagem e você não paga nada mais por isso. Vamos ajudar essa produtora de conteúdo a adquirir mais livros e falar mais sobre eles, em um ciclo sem fim de bons conteúdos na internet? :)
o problema é que os babacas não vão aceitar o pacto... rs
achei muito interessante que em "Impostora" todos os personagens são odiáveis, até os que teoricamente estariam ~certos nas situações (menos a mãe da Athena, ela é uma fofa)