Vocês me dão licença para começar esse texto com uma pergunta meio autoajuda? Ok, então vamos lá! Qual foi a última vez que você se sentiu grata por algo? Assim, de olhar para a sua vida e pensar: “obrigada por tudo o que eu tenho?”.
Essa pergunta e esse sentimento - que pra muita gente pode soar meio cafona -, rondaram a minha mente diversas vezes nessas primeiras semanas do ano. Na vida real, aqui no Rio de Janeiro de 2024, eu enfrentei diversos obstáculos. Alguns burocráticos, próprios da vida de adulto, e outros de ordem emocional. (Tá, acho que a ansiedade agora também faz parte da vida adulta, tanto quanto o imposto de renda). Na ficção, no entanto, eu estava em 1972, perdida na Cordilheira dos Andes depois de um acidente de avião.
O primeiro livro finalizado esse ano foi o excelente “Milagre nos Andes”, de Nando Parrado, um dos sobreviventes do acidente aéreo que matou 29 pessoas no Chile. Eu cresci ouvindo relatos desse caso, que ficou conhecido tanto pela dificuldade de sobreviver 72 dias nas montanhas, quanto pela forma como eles encontraram de fazer isso. Sim, os sobreviventes se alimentaram dos cadáveres dos amigos mortos.
Por algum motivo que foge à minha compreensão, a mídia resolveu focar nesse aspecto da história, e não no fato surpreendente de que 16 pessoas conseguiram superar dificuldades inimagináveis e voltar para casa. O relato desses 72 dias é tão surreal, que não seria necessário focar nesse detalhe tão macabro para conseguir a atenção do público, mas sigamos.
A história foi transportada para o cinema algumas vezes - inclusive com Ethan Hawke no papel de Nando em “Vivos” - mas a mais recente talvez seja a melhor. “A Sociedade da Neve”, dirigido por J. A. Bayona é um filme incrível, bem feito, bem escrito, bem dirigido.
Apesar de algumas cenas bem gráficas, o diretor escolheu um ângulo interessante para contar a história, focando menos na agonia física, e mais no emocional de cada personagem. O frio, a fome, o medo, a saudade dos que se foram são retratados de uma maneira muito sensível. É quase impossível para o espectador não se colocar no lugar deles. Quem seria eu? Eu desistiria diante das dificuldades? Eu me agarraria a que para sobreviver?
E então voltamos à gratidão lá do início do texto. Histórias de tragédias têm o poder de me colocar de volta aos eixos, me tirar da espiral de pessimismo e reclamações em que eu entro de vez em quando. Os Andes, Everest, Columbine, relatos do Holocausto, momentos de dor profunda fazem com que eu coloque as minhas em perspectiva, para no final entender que nem podem ser chamadas de dor, no máximo de desconforto.
Não estou dizendo aqui que a gente tenha que partir para a positividade tóxica Não dá para achar que toda vida é linda se você não estiver em um tiroteio, acidente aéreo ou campo de concentração. Não se trata disso.
Mas uma das coisas que fez Nando Parrado sobreviver, segundo seu relato, foi lembrar de uma história vivida pelo seu pai, quando disputava uma regata. Vendo seu adversário disputando centímetros na água, ele decidiu “sofrer mais um pouco”. Tolerando o sofrimento por mais um tempo e insistindo um pouco mais, ele ganhou a competição. Inspirado por ele, seu filho se manteve vivo por 72 dias nos Andes e voltou para casa são e salvo.
Às vezes é só isso mesmo: uma questão de decidir “sofrer mais um pouco”. Algo que a nossa geração não está muito acostumada, é verdade. Mas para os pequenos problemas da vida, isso tende a bastar.
Da semana
Semaninha difícil para ser mulher. Se nem Paolla Oliveira e Yasmin Brunet estão a salvo de comentários machistas de homens com layout desconfigurado, quem somos nós, não é mesmo? Que isso nos sirva de lição: se vão falar de nós, de uma forma ou de outra, talvez seja um bom momento para a gente se libertar dessa prisão que a beleza compulsória nos impõe.
É uma pena que esses comentários sejam feitos a terceiros ou pelas costas. Gostaria demais de responder a alguns deles.
Curtinhas!
Uma conversa muito boa sobre o filme “A Sociedade da Neve”.
O conceito de “That Guy”. É raro, mas acontece muito.
Essa série maravilhosa da @literaturainglesa sobre herdeiros encrenqueiros.
Eu gosto de “quenga”, mas gostei da explicação do pacote.
Uma reflexão excelente sobre o uso da língua como instrumento de demonstração de poder.
O que eu estou lendo?
Esse ano, resolvemos reativar o Lendo Mulheres pelo Mundo (antigo @lendomulheresclassicas), projeto que eu amo e ajudei a criar. O livro escolhido para janeiro foi “Solitária”, da Eliana Alves Cruz. Estou bem no início, mas já adianto que estou adorando a prosa rápida e sensível dela. Volto em breve para contar mais sobre ele.
Além dele, estou lendo “O Vento sabe meu nome”, mais uma lindeza da Isabel Allende. Louca para descobrir que livro ela começou a escrever esse ano!
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