Terminei a leitura de A Boba da Corte, novo livro da Tati Bernardi, há poucos dias. O tema me interessou logo de cara: a sensação de não-pertencimento que ela sentiu quando começou a frequentar a “elite intelectual” paulistana. Poucos dias antes, Gabriela Prioli viralizou na internet ao contar em um podcast que se sentiu da mesma forma quando começou a namorar o atual marido. Ela comentou que chegava a sentir dor física quando notava discursos propositadamente excludentes.
Ou seja, é uma galera que pode até aceitar te ceder um espaço na mesa de jantar, mas fica esperando avidamente o momento em que você vai cometer algum deslize no uso dos talheres.
Tati Bernardi vem do Tatuapé. Gabriela Prioli, da Vila Mangalot. Bem longe das áreas nobres de São Paulo. Eu sou nascida e criada na zona sul do Rio, mas reconheço de longe essa sensação de “não sou daqui, não pertenço a esse lugar”.
É um “não-lugar” mesmo, uma zona cinza que quem está de fora precisa estar disposto a enxergar. Cada um carrega a sua, mas a minha vem do fato de que a minha origem e a origem das minhas famílias não coincidem.
A família da minha mãe vem de Brás de Pina, subúrbio do Rio. A do meu pai, vem da Tijuca, na época em que o bairro era o auge da classe média carioca. Um lado da família fala aos berros, competindo com a televisão. O outro fala baixinho, para não atrapalhar quem está lendo no sofá. Os dois sabem que pobres existem. Um por experiência própria. O outro, pelo casamento. E eu?
Eu nasci numa época em que minha mãe já tinha mais dinheiro e o meu pai menos. A era dos extremos - onde a família materna passava por apertos financeiros, e a paterna aproveitava casas com piscina e veleiros na Região dos Lagos - já tinha passado. Agora, todos nós - acrescidos de padrasto e madrasta - nos encontrávamos bem no meio. Ali na classe média da zona sul do Rio.
Não é um lugar ruim para se estar. Não mesmo. O problema é que as pessoas podem sair do lugar de onde nasceram, mas o lugar não sai delas. E ignorar essa dualidade traz sim, consequências para todos os envolvidos.
Eu fui criada de modo a não repetir os padrões da família da minha mãe. Era preciso estudar, ter uma profissão, e nunca, jamais, depender de homem nenhum. O conhecimento era o caminho. A ignorância, algo a ser evitado a todo o custo.
A situação financeira dos meus pais permitia que eu estudasse em colégios particulares, fizesse a faculdade que eu bem entendesse, lesse todos os livros que eu quisesse, fosse ao cinema várias vezes na semana. Frequentasse teatros, exposições, shows. Comprasse o último CD da Britney Spears e fosse ver um balé no Municipal. Eu não precisava me preocupar com o meu sustento ou o da minha família, poderia me dar ao luxo de ter como primeiro trabalho um estágio na minha área, sem me preocupar com o salário. Mas eu precisava SABER das coisas. Precisava ser CULTA. O caminho para vencer na vida estava no CONHECIMENTO.
E eu cumpri a missão que me foi dada, acho que cumpro até hoje. Então porque a sensação de “não sou daqui” me persegue?
Tati fala sobre isso no livro:
“Mas assim que eu comecei a saber mais do que eles, assim que comecei a demonstrar mais sensibilidade, curiosidade ou olhar crítico, começaram os apelidos: fresca, estranha, ‘gosta de ver o circo pegar fogo’, ‘não quer ver ninguém feliz’, ‘não liga pra a família’, ‘não dá valor pra nada’”.
É pra ser diferente. Mas não tãããão diferente assim, por favor. Seja um pouco igual a nós.
O problema reside nesse “nós”. Nós, família do subúrbio? Nós, família paterna, ex-tijucana que agora se mudou para o interior? Ou nós, amigos de escola zona sul carioca? Ou nós, família do namoradinho que mesmo estudando na mesma escola, morando no mesmo bairro e tendo casa na mesmíssima cidade do interior insistimos em te enxergar como inferior?
Tati Bernardi e Gabriela Prioli falam de DINHEIRO, em caps lock mesmo. Elas estão inseridas em um universo em que TER dinheiro é, de fato, tê-lo. Olhar a conta bancária sem palpitações. Escolher a comida no restaurante sempre pela coluna da esquerda, nunca da direita.
Não é a realidade da maior parte do Brasil. E por isso, falar de descriminação sendo da zona sul carioca, soa um pouco white people problem. E é mesmo. Quem acorda às 4h da manhã e precisa pegar um trem lotado não tá nem aí para os desaforos que eu ouvi da família de namorados sem noção. E nem deveria. Mas isso não invalida o incômodo do “não-pertencimento”, apenas o contextualiza.
Aqui, nessa bolha, eu digo que entendo Tati e Prioli. Conseguir “entrar em” é diferente de “ter nascido”. E “ter nascido” é diferente de “essa rua tem o nome do meu bisavô”.
Eu demorei anos - muita terapia, muitos livros, uma Tati Bernardi e uma Gabriela Prioli - para entender que esse “não-lugar” é um trunfo. Não sou rica, não sou pobre - de herança, tenho apenas artrite, artrose e uma tendência à depressão - mas consigo transitar entre os dois mundos com algum jogo de cintura.
Não passo vergonha no subúrbio, sei usar os talheres nos restaurantes caros do Leblon, e tive a sorte de ter uma infância com cheiro de terra molhada. E isso é mais do que os herdeiros em seus pisos de mármore podem dizer.
Mas vale a pena olhar para o lado - e para dentro - e observar os nossos discursos e posicionamentos. Até que ponto repetimos, mesmo sem perceber, as microagressões que sofremos?
Como dizia Paulo Freire, nossa lógica é inclusiva ou excludente?
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