Atenção: esse texto pode conter gatilhos de traumas e abuso sexual.
A internet é um lugar curioso. Memes são feitos para fazer rir, mas vez ou outra alguma bobagem acaba nos pegando em um ponto mais sensível e levando a uma espiral de reflexão. Há algumas semanas, eu estava rolando o feed do Instagram quando me deparei com a seguinte frase:
Se a geração Z precisasse de uma imagem para entender a expressão “a ficha caiu”, com certeza a minha cara poderia ser usada como exemplo. O riso se transformou em choque em questão de segundos. Lembrei do livro “Fome”, da autora Roxane Gay, onde ela conta como o abuso sexual sofrido na infância desencadeou o quadro de obesidade que a acompanha até a idade adulta. Lembrei das amigas que ganharam peso na adolescência depois de um episódio traumático. Lembrei de mim mesma que, até poucos anos atrás, pesava 10kg a menos e percebi ali, naquele momento, que eu estava varrendo para debaixo do tapete algo que precisava ser encarado de frente.
Veja bem, é óbvio que eu sei de onde meus quilos vêm. Eles vêm do brigadeiro, do doce de leite, da pizza, do hambúrguer e de tudo o que eu como quando estou atrás de conforto. Esse comportamento não é novo. A novidade está no fato de que, pela primeira vez, eu fui capaz de ligar dois pontos que me incomodavam ao extremo: o ganho de peso e os episódios de abuso que sofri há alguns anos.
Eu estava numa casa de praia com um grupo de amigos, quando decidi cochilar no sofá no fim da tarde. Acordei com a mão de um deles dentro do meu short. Naquele estado entre o sono e a vigília, eu demorei para entender o que tinha acontecido e não reagi. Senti, mas não reagi. Fiz o que muitas mulheres fazem em situações assim: eu me calei.
Dois anos e dois meses depois, o mesmo “amigo” passou a mão nos meus seios em uma festa de Réveillon. Assim, do nada, sem contexto e obviamente sem permissão. Só porque naquele momento, ele sentiu vontade de encostar no meu corpo e mostrar que, por ser homem, ele podia. Dessa vez, eu não me calei. Saí de perto, chamei um amigo e contei o que tinha acontecido. A resposta foi: “não fala nada, ele vai dar um jeito de inverter a situação e vai ser pior para você.” Melhor não contar.
Eu não sou a única Tatiana a ouvir isso. A Tatiana Salem Levy ouviu o mesmo conselho ao confidenciar para pessoas próximas que tinha sido abusada pelo padrasto. “Melhor não contar”. Melhor não contar para a sua mãe, afinal, ela está doente. Melhor seria não ter me contado, não sei lidar com essa informação. Melhor não contar, ele é um cineasta respeitadíssimo. Melhor não contar.
Como eu, ela seguiu o conselho por algum tempo. Como ela, eu também decidi falar sobre isso com o abusador. O resultado foi aquele que o outro amigo já tinha previsto: o jogo virou e o abuso sexual se transformou em um caso de amor mal resolvido nas mãos de quem foi mais esperto e dominou a narrativa. Aprendi a duras penas que a história pertence a quem a conta primeiro. Toma-se como verdade a primeira narrativa, as outras são apenas versões. Por isso, melhor não contar.
Mas é também por isso eu admiro quem tem coragem de ultrapassar essa barreira e falar, corajosamente, sobre seus traumas. E foi exatamente essa admiração que me levou até a livraria para comprar o livro mais recente da Tati. Li a primeira página de “Melhor não contar” com um objetivo muito claro: usar o trauma ficcionalizado de outra mulher como forma de tentar curar o meu.
“Aprendemos desde cedo a esconder sentimentos, ideias. Talvez por isso, quando uma mulher escreve, ela deixe reverberar essa escrita da sua infância, da sua adolescência, que se construiu na intimidade, com um corpo que, como a palavra, foi obrigado a se retrair, a se recolher”.
Escrevemos em diários para nos escondermos. Eu mesma preenchi páginas e páginas de vários cadernos tentando dar sentido a esses episódios. Mas eu precisei mesmo da ajuda de outra mulher para entender o óbvio: mesmo com um zilhão de sentimentos conflitantes e uma culpa que, sabe-se lá porque, ainda permanece, não há nada que nós possamos fazer para evitar que essas coisas aconteçam.
Podemos sim, viver em constante estado de alerta, evitar ruas escuras, amarrar um casaco na cintura para não chamar atenção, compartilhar a localização ao entrar em um carro de aplicativo. Mas a verdade é que são raros os casos em que um completo estranho nos leva a um matagal e viola nosso corpo (caso real narrado no excelente “Vista Chinesa”, também escrito pela Tatiana). A maioria esmagadora dos abusos são cometidos por homens que nós conhecemos e, pasmem, confiamos.
Eu era amiga do meu abusador. Tatiana se sentia segura com o padrasto. Nós duas vivemos bons momentos com esses caras. Até que não vivemos mais. Ao longo dos anos, nós (e todas as mulheres) interiorizamos coisas que não são nossas, mas que agora precisam ser desenterradas em sessões de terapia que mais parecem escavações arqueológicas.
Falar sobre elas, dar nome, usar os termos corretos, escrever, processar, tudo isso faz parte do processo de cura e eu fiz um pacto comigo mesma de não abandoná-lo no meio do caminho.
Livros e relatos como o da Tati ajudam imensamente, mas sei que são apenas uma parte de um todo mais complexo e mais dolorido. É preciso contar. Não sei se a partir de hoje meu corpo vai ficar mais leve, mas o meu coração vai. Contemos.
Curtinhas!
De antemão, já peço desculpas pelo atraso na newsletter dessa semana. Mas sábado tomei coragem e tirei um projeto antigo do papel. Sim, agora a ZPSA tem uma versão paga! A edição dos melhores do mês migrou para lá e, em breve, vou liberar compilados do que eu ando lendo e descobrindo nos meus estudos de literatura. To muito animada e espero ver vocês por lá! 🙂
E já que estamos falando da Tatiana, esse vídeo vale a pena.
Um texto incrível, com um título que reverberou demais por aqui.
Uma lista de suspenses nacionais para maratonar.
Um tapa na cara com amor.
O que eu estou lendo?
Já que estamos na vibe de relatos autobiográficos de mulheres fodas, comecei “Nós, o Atlântico em solitário”, da Tamara Klink. Eu aqui com medo de tirar a carteira de motorista e não saber fazer baliza e ela, aos 23 anos, resolve atravessar o Atlântico completamente sozinha. De novo: atravessar o OCEANO Atlântico. SOZINHA. Em um veleiro. A pluralidade do ser humano nunca cansa de me surpreender. Recomendo demais tanto o livro quanto o perfil da Tamara no Instagram.
E não custa lembrar: os livros que eu cito aqui nessa newsletter sempre vêm acompanhados de um link de afiliado da Amazon. Ao comprar qualquer item através desses links, eu ganho uma pequena porcentagem e você não paga nada mais por isso. Vamos ajudar essa produtora de conteúdo a adquirir mais livros e falar mais sobre eles, em um ciclo sem fim de bons conteúdos na internet? :)
“Toma-se como verdade a primeira narrativa, as outras são apenas versões”. Wow. Você jamais vai estar sozinha no seu processo de cura ❤️
Estou muito curiosa sobre este livro. Uma outra amiga publicou um vídeo com um trecho lido por ela desta obra. Texto lindo e delicado. Obrigada por compartilhar e que nos calemos menos.