Sobre madrastas e um livro que me fez sentir tudo
#112 Zero Pretensões e Sentimentos Aleatórios
É próprio do ser humano escamotear os próprios defeitos. Mesmo quando muito terapeutizados, gostamos de acreditar que temos bom coração, que somos puros, livres de más intenções. Quando erramos, é sem nenhuma intenção de magoar. Amamos seres absolutamente imperfeitos, mas quando se trata de nós mesmos, associamos o merecimento daquele amor à perfeição. E aí, Deus me livre deixar o outro saber que meu hobby é reclamar, que acordo de mau humor, que tenho atitudes mesquinhas, que falo mal dos outros.
A honestidade com os próprios defeitos choca e, pelo menos em um primeiro momento, afasta. Foi com essa sensação que comecei a ler o delicioso Coisas importantes também serão esquecidas, o diário da maternidade da atriz e escritora Martha Nowill.
Sim, é delicioso. Mas se ela se propôs a ser tão honesta nos seus escritos, também não posso abrir mão da sinceridade ao falar sobre eles. Tivemos um início difícil, Martha e eu. Ao ler sobre sua relação com os enteados - os dela própria e os do seu pai -, confesso que me senti atingida. Filha de pais separados, como ela, eu fui criada por uma mulher sensacional. A relação com a minha madrasta nem sempre foi fácil, mas por volta dos 15 anos, nos encaixamos.
Ela estava longe de ser uma madrasta de filme da Disney, pelo contrário. A mimada, no caso, era eu. Meu pai fazia todas as minhas vontades, o que às vezes incluía lotar a casa em que eles viviam de crianças e adolescentes. O contexto familiar não ajudava, era uma dinâmica desafiadora, para dizer o mínimo. Estarmos ali, juntas, naquelas circunstâncias talvez não fosse exatamente a nossa primeira escolha. Talvez, uma versão anterior dela preferisse casar com um cara que não tivesse filhos. Talvez, uma versão minha - infantil e completamente equivocada - fantasiasse uma vida familiar mais tradicional com pais casados. Talvez, talvez, talvez.
Por sorte, somos entusiastas da ideia de fazer o melhor com o que temos. E a verdade é que ter uma a outra foi a melhor coisa que (me) nos aconteceu. Quando entendemos que para ser mãe/filha não é preciso ter laços sanguíneos e nem anular as famílias de origem, construímos a nossa própria relação, com nossos pontos de conexão e divergências, claro. Elas existem, são reconhecidas e respeitadas, mas não ganham muito espaço no dia a dia.
Depois que meu pai se foi, entendemos que é preciso celebrar a presença enquanto ainda a temos. A vida passa num segundo. Então, conversamos. Muito. Não economizamos no “eu te amo”. Não deixo de falar ou perguntar nada. Mando mensagem contando o que estou fazendo, peço opinião sobre a vida. A mãe que meu pai me deu hoje funciona como uma bússola. É a ela que eu recorro quando me sinto perdida no caminho.
Então, voltando ao livro da Martha, me ressenti quando vi que a sua relação com os enteados não correspondia ao ideal que eu criei na minha cabeça, olha que injusto. Me entristeci pensando no que ela e seus enteados (e seus “irmãos postiços”) poderiam estar perdendo. Talvez eu a tenha chamado de chata em algum ponto das margens do livro (desculpa, Martha!), mas persisti na leitura. E então fiz as pazes com ela.
Fiz as pazes justamente por admirar a honestidade que citei no início desse texto. Publicar o que se escreve é um ato de coragem imenso. Publicar o próprio diário, escrito sob os efeitos enlouquecedores dos hormônios, enquanto fabricava dois seres humanos, durante uma pandemia, com o Bolsocoiso no poder… Me faltam palavras.
Para nossa sorte, elas não faltaram à Martha e me fizeram companhia durante o Carnaval. Acompanhei a sua gestação dia após dia, semana após semana e, embora ao final da leitura eu tenha pensado seriamente em ligar as trompas e partir feliz para a adoção, foi uma ótima experiência.
Se livro bom é aquele que nos faz sentir, Coisas importantes também serão esquecidas entra na categoria de livro ótimo. Senti tudo e mais um pouco. E recomendo demais.
Curtinhas!
Ainda na vibe “diário”, os diários de invernagem da Tamara Klink.
Esse post lindo da Liv Piccolo com tudo o que nós, mulheres, merecemos ler.
Um podcast que eu adoro, uma mulher que me inspira.
Livros para repensar os padrões de beleza.
Miranda July é nossa colega de Substack. <3 Já seguem?
O que eu estou lendo?
Sigo na companhia de Brodeck’s Report, cada vez mais encantada com a narrativa. A cada capítulo eu me impressiono mais com a habilidade de Phillipe Claudel, que cria imagens lindíssimas para falar da Segunda Guerra. Ao meu ver, o autor conseguiu encontrar o equilíbrio ideal na hora de narrar os horrores da época, sem recorrer a obviedades, mas também sem poupar o leitor. Uma pena que não tenha tradução para o português - com exceção de uma adaptação para quadrinhos -, mas se você lê em inglês (ou no original, em francês), vale muito a pena a experiência!
E não custa lembrar: os livros que eu cito aqui nessa newsletter sempre vêm acompanhados de um link de afiliado da Amazon. Ao comprar qualquer item através desses links, eu ganho uma pequena porcentagem e você não paga nada mais por isso. Vamos ajudar essa produtora de conteúdo a adquirir mais livros e falar mais sobre eles, em um ciclo sem fim de bons conteúdos na internet? :)
fiquei muito comovida com o seu relato <3