Sobre pais, deuses e uma religião de chocolate
#32 Zero Pretensões e Sentimentos Aleatórios
Se meu pai estivesse vivo, estaria fazendo 79 anos hoje. Mas como todos os herois, as divindades e talvez os vampiros, ele está para sempre congelado nos 66.
Quando eu era criança, meu pai era meu próprio Deus, eu era sua sacerdotisa e nós dois constituíamos nossa própria religião. Nossos rituais eram formados por taças generosas de leite condensado com nescau, cantorias no carro, truques de mágicas, bife malpassado com fritas, mímicas até a madrugada, livros, conversas profundas e piadas ruins. Às vezes, deixávamos meus primos participarem desses rituais, o que se me deixava enciumada, também me enchia de orgulho. Ele era o tio mais amado por todos, os donos das melhores brincadeiras. Meu pai era o Sol e eu, apesar do tamanho e da maturidade de uma poeira cósmica, me sentia um pouco Sol também.
Papai se foi no dia 8 de fevereiro de 2010. Meu maior medo era receber a notícia, assim, posta em palavras. Alguém me disse que quando ele partisse eu simplesmente ia saber. Achei um papo meio místico demais, não dei muita bola. Até o dia em que, voltando do trabalho, quase chegando em casa, eu soube com uma clareza assustadora, sem ninguém precisar falar. "Meu pai morreu". Não sei que parte minha entendeu primeiro que ele não estava mais aqui, mas eu agradeço não ter precisado ouvir essa frase de alguém. Acho que minha mãe também agradeceu por não precisar dizê-la.
Nós não sabemos lidar com a morte e temos muita dificuldade de admitir que o luto é uma mistura de sensações, muitas vezes conflitantes. Nos dias que se seguiram eu senti uma dor surreal, como se minha alma estivesse deixando o corpo. Mas também senti alívio e gratidão. Papai lutava contra um câncer e um coração cansado há anos, até que parou de sofrer. E eu tive a sorte de ter um último encontro lindo, profundo e amoroso. Dissemos "eu te amo" um para o outro, eu saí do hospital e entrei no ônibus para o Rio. E pronto. A despedida foi leve porque parecia apenas temporária.
As perguntas vão se acumulando. Ele estaria orgulhoso de mim? O que acharia do Chat GPT e da IA? Leria essa news? Ainda ouviria Ivete e Caetano? Que livros estaria lendo? Estaria pedindo netos ou diria que eu ainda tenho tempo? O que ele diria da atuação do Flamengo no jogo de ontem? Foram 24 anos sabendo a opinião do meu pai sobre todos os assuntos, dos mais relevantes aos mais inúteis. Agora são 13 tentando adivinhar.
Uma noite de Carnaval - depois de tomar algumas doses de melzinho com meus primos - perguntei para o meu tio, irmão caçula do meu pai, se ele era tudo isso mesmo ou se a minha memória queria se apegar a uma ideia meio exagerada. A resposta veio rápida: era tudo isso e muito mais.
Fico com essa memória então. Meu pai era mesmo tudo isso.
PS: feliz aniversário, pai! Onde você estiver!
Curtinhas!
A crise de meia-idade chegou por aqui. Mas pelo menos eu não estou sozinha.
Esse texto da Natalia Timerman sobre um livro muito bom (mais sobre ele aqui embaixo).
Essa lista de leituras da Miá Mello.
Um lembrete.
O que eu estou lendo?
“Outro Lugar”, da escritora israelense Ayelet Gundar-Goshen, me chamou atenção já na sinopse. Lilach saiu com o marido e o filho de Israel buscando uma vida mais tranquila em Palo Alto, na Califórnia. Tudo parece bem, até não estar mais. Um atentado a uma sinagoga começa a balançar as certezas de Lila em relação à América ser um lugar mais seguro. Narrado do ponto de vista dessa mãe, o livro tem uma linguagem rápida, fluida e ao mesmo tempo muito inteligente para discutir temas pesados como bullying, racismo e antissemitismo. Vale muito!
E você já sabe: ao comprar qualquer item através dos links dessa news você ajuda essa produtora de conteúdo a adquirir mais livros, em um ciclo sem fim de bons conteúdos na internet. :)
Terminei de te ler muito muito muito emocionada 🖤
Tati, obrigada por esse texto. Conhecer seu pai por meio das suas palavras me faz sentir mais próxima do meu também. Também me faço essas mesmas perguntas e as vezes brinco de criar frases que ele diria para pessoas que são novas na minha vida. Com certeza eles eram demais para esse mundo, no caso do meu pai, ele estaria achando absurdo o chat gpt. hahaha