Se essa fosse uma possibilidade real e eu tivesse a chance de escolher, já teria a resposta na ponta da língua: uma hora no passado com a mais absoluta certeza. As coisas que eu vivi, os lugares que eu já visitei, as pessoas com quem convivi durante anos ainda são uma presença vívida. A nostalgia faz parte do meu DNA, assim como ler, escrever e comer brigadeiro.
A resposta assim, de bate-pronto, é até curiosa, visto que eu gasto uma boa parte das minhas horas disponíveis pensando no futuro, fazendo planos, pensando em respostas para diálogos que provavelmente nunca vão acontecer e, claro, sofrendo por problemas que são meros frutos da minha imaginação.
Há quem diga que a ansiedade é excesso de futuro, a depressão é excesso de passado e a saúde mental reside no presente. Então, está bem explicado porque eu sou esse caos. Minha mente funciona como uma linha de metrô e eu posso passar dias vagando entre uma estação e outra sem nunca descer em nenhuma delas. Mas se fosse preciso escolher, sem dúvida eu voltaria para o passado.
O lugar eu trago tatuado em mim: uma casinha de tijolos aparentes no alto de um morro, cercada de mata atlântica. Nela, existe (ou existia, até meados dos anos 2000) uma varanda envidraçada perfeita para ver filmes de terror. Lá dentro, uma mesa de madeira está sempre posta, com pães, café quentinho e nescau gelado. Em volta, tem família, tem amigos, tem cachorro. Tem gente brincando de mímica, palavras cruzadas ou jogando conversa fora.
Nessa casinha, a TV fica ligada até tarde, embalando a insônia do dono da casa que, sempre atento, vigia os passos da filha adolescente. Lá tem também um quarto com meia parede rosa e dois andares. Ali, na parte de cima, tem um quebra-cabeça de fadas quase completo (uma pecinha se perdeu em um espaço ínfimo entre as tábuas do chão e nunca mais foi resgatada) Tem também uma estante de livros com toda a coleção de O Pequeno Vampiro e um álbum das Spice Girls. Uma camisa do Vasco está pendurada no armário, muito embora o dono da casa seja um flamenguista roxo. Coisas da filha adolescente que não superou o 6x1 em cima do time de nascença.
Do lado de fora do quarto existe uma goiabeira que nunca deu goiaba, mas tinha os galhos perfeitos para apoiar os pezinhos das crianças da família. Mais adiante, uma garagem servia de ponto de encontro da criançada da rua. Raras vezes a churrasqueira viu um pedaço de carne ou um saco de carvão, mas ouvia Charlie Brown Jr., Red Hot Chilli Peppers e Los Hermanos como o mais devotado dos fãs. O chão do quintal, coberto com brita, avisava a chegada de algum visitante antes mesmo dos gritos que chamavam para brincar.
Essa casinha de tijolos foi testemunha de muitas brincadeiras, muitas gargalhadas, alguns primeiros beijos, brigadeiros de panela, conversas bobas e edificantes, machucados de infância, crises adolescentes, lutos e dores da vida adulta.
Se me fosse oferecido, eu ficaria uma hora no passado dentro dela (quem sabe duas ou três?) analisando o chão de cerâmica, as tábuas corridas da sala, sentindo o cheiro de naftalina dos armários da cozinha. Mas fico me perguntando: se um dia ela fosse posta à venda novamente, por um valor que eu pudesse pagar, eu voltaria? Faria da casinha de tijolos meu lar de novo? Acho que não.
Fazer morada no passado é algo perigoso. Uma mudança, um detalhe fora do lugar e você corre o risco de ficar preso ali para sempre. O dono da casa não existe mais, nem o cachorro que a guardava. As crianças cresceram e já têm suas próprias crianças. Os vizinhos já não são os mesmos, e nem Charlie Brown e Los Hermanos existem mais. As colunas da garagem não reconhecem a voz da Taylor Swift. Mas se me oferecessem uma hora no passado, ah, eu iria!
Curtinhas!
Relato de uma inundação, texto lindo e sofrido da Julia Dantas.
No final do texto, a gente encontra uma forma de ajudá-la. Vamos todos?
O perigo de romantizar “o povo pelo povo”.
A história do OK. (Vi primeiro na news da Agência HQT).
Como a dança pode dizer tudo sem dizer uma palavra. (Link especial para os fãs de Bridgerton).
A arte de inventar palavras.
O que eu estou lendo?
Terminei há poucos minutos “A Pediatra”, da Andrea del Fuego. O livro conta a história de uma pediatra que odeia crianças, até conhecer uma que vai mudar completamente o rumo da sua vida. Eu achava que não seria possível odiar mais um personagem como odiei Catherine e Heathcliff, de “O Morro dos Ventos Uivantes”, mas eis que conheci Cecília, a narradora dessa história. Que asco. E que amor por ela. A literatura tem dessas coisas, né?
Não sei ainda qual será minha próxima leitura, mas prevejo uma ressaquinha literária.
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Eu também iria pro passado, mas mais pela segurança de saber o que iria acontecer 🤭
eu também não pensaria duas vezes em escolher uma hora no passado.