Violeta: uma aula de storytelling e história do Chile
#44 Zero Pretensões e Sentimentos Aleatórios
Por algum motivo que me escapa à compreensão, ainda dividimos livros em categorias como “alta” ou “baixa” literatura. Sem entrar no mérito acadêmico, na caixinha de alta literatura geralmente colocamos aqueles livros intrincados, áridos, com palavras difíceis, temas tristes, que mostram toda a dor da existência humana. Na caixinha de baixa literatura, está tudo aquilo que lemos com prazer.
Segundo essa lógica, Isabel Allende com certeza estaria no segundo grupo. Muitas vezes ignorada pelos críticos, aqui em casa ela é só sucesso. Li “Casa dos Espíritos”, seu livro de estreia, duas vezes. E sei que até o fim da vida vou ler muitas mais. “Paula” é de uma delicadeza absurda, e “Mulheres de minha alma” é uma bela homenagem àquelas que vieram antes da autora. Mas “Violeta”, minha última leitura, ganhou um espaço cativo na lista dos meus favoritos.
A sinopse é simples. Violeta nasceu em 1920, durante a pandemia de gripe espanhola. Já centenária, vivendo a pandemia do COVID em 2020, ela decide escrever uma carta para Camilo (só vamos descobrir sua identidade lá pelo meio do livro), contando o que viveu em seus 100 anos, com erros, acertos, tropeços e, como diz logo no início da narrativa, seus pequenos pecados.
A personagem é incrível - quem leu “Casa dos Espíritos terá” uma grata surpresa - e mesmo que o livro fosse uma lista dos acontecimentos da sua vida pessoal, já valeria a leitura. Mas como a autora é Isabel Allende, “Violeta” é também uma aula de história do Chile.
Estive lá em 2013, e fiquei apaixonada por Santiago e Valparaíso (Viña del Mar me lembrou um pouco a Barra da Tijuca, poderia facilmente pular essa parte da viagem), pelas vinícolas, pela vista da Cordilheira dos Andes e até pelos tremores de terra (não estou doida, peguei um bem levinho, que só serviu mesmo como anedota de viagem). Para o visitante desavisado, o país pode parecer o paraíso do Cone Sul. Mas, o Palácio de la Moneda e o estádio Nacional não deixam a gente esquecer: o Chile também teve um passado brutal e sangrento, durante a ditadura do Pinochet.
Isabel Allende também contribui para essa memória: prima de segundo grau de Salvador Allende, o presidente deposto, ela conta e reconta esses anos de ditadura, por vários ângulos diferentes. Em “Violeta”, alguns personagens vão passar por percalços com a repressão. Mesmo que ela nunca dê nome ao país e nem aos personagens reais, sabemos exatamente de quem ela está falando. Em “Casa dos Espíritos”, por exemplo, Allende era o Presidente, Pablo Neruda, o Poeta. Em “Violeta”, a Colonia Dignidad se transforma em Colônia Esperanza, mantendo a ironia. Dignidade e Esperança passavam bem longe dali.
E como todo livro é um novelo, que puxa um tema, outro tema e mais outro, fui pesquisar mais a fundo aquilo que Violeta conta muito por alto. A colônia em questão era comandada por Paul Schafer, um soldado nazista que, depois da guerra, foi perseguido na Alemanha por ter abusado sexualmente de duas crianças. Onde ele encontrou refúgio? Isso mesmo. No Chile. Aliás, não só refúgio, mas terras, apoio e até respeito. A Colonia Dignidad começou como uma comunidade estranha e logo estava a serviço da ditadura, matando e torturando os inimigos do regime.
Pode soar meio macabro, mas essas “seitas” sempre me despertam curiosidade. Como elas se formam? Como as pessoas se deixam levar por esses discursos carismáticos, mas no fundo cruéis? Eu estaria a salvo? Você estaria? A gente pode afirmar com 100% de certeza?
Se você se interessa por esses casos, ficam aqui duas recomendações. A primeira é a série documental “Colônia Dignidade: uma seita nazista no Chile”, disponível na Netflix. São seis episódios de mais ou menos 60 minutos cada, repletos de entrevistas, depoimentos de pessoas que fizeram parte da comunidade e imagens de época. Outra dica boa é o filme “Amor e Revolução”, com a Emma Watson e o Daniel Brühl. Ele é sequestrado pela polícia de Pinochet e ela vai atrás dele, até a Colonia Dignidad.
A literatura e o cinema seguem sendo minhas maneiras preferidas de conhecer a história de um país ou uma época. Quando eles se complementam então, a experiência é incrível. Fica a forte recomendação do livro, do filme e da série!
Curtinhas!
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O que eu estou lendo?
“A Louca da Casa”, da Rosa Montero, estava na minha lista de desejados há tempos, porém esgotadíssimo. Achei um exemplar por acaso, meio abandonado na estante de Hispânicos, do sebo Baratos da Ribeiro. Eu nem ia comprar nada, mas às vezes o Universo fala com a gente por meio de garimpos em sebos, fazer o quê?
Trouxe pra casa, fiz uma enquete no Instagram, e esse venceu de lavada dos outros escolhidos. Como sempre, meus seguidores acertaram na escolha. “A Louca da Casa” é um livro excelente sobre criatividade e a escrita como ofício. Ando bem apaixonada pela forma como a autora compõem seus textos, sempre com um bom humor e uma leve ironia. Vale muito a pena procurar uma edição em sebos! E claro, encher a Todavia de inbox para saber quando eles vão relançar o livro por aqui!
E você já sabe: ao comprar qualquer item através dos links dessa news você ajuda essa produtora de conteúdo a adquirir mais livros, em um ciclo sem fim de bons conteúdos na internet. :)
Adoro Allende e o último livro dela que li e adorei é Eva Luna. Muito bonito.
Violeta está na lista para 2024.
beijos
eu tambem fiquei encantada com valparíso na oportunidade que tive de ir ao chile!! e comprei meu primeiro isabel allende (a casa dos espiritos) mes passado. ansiosa pra começar a leitura!