Atenção: esse texto fala sobre luto e pode conter gatilhos.
“A vida muda rapidamente. A vida muda em um instante. Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina”.
Há poucos meses, eu estava finalizando o expediente e me preparando para curtir a noite de sexta com meu marido quando ouvi um grito de socorro vindo do corredor do prédio. Minha primeira reação foi: nenhuma. Fiquei parada pensando que aquilo não fazia sentido algum. Até que veio o segundo grito e - esse sim! - me despertou da letargia. Abri a porta de casa e corri em direção ao som.
O grito vinha de uma moça, cuidadora da minha vizinha de corredor. A senhora tinha acabado de tomar banho e estava sentada na cama quando, de repente, parou de respirar. Em poucos minutos, a casa estava cheia de moradores tentando ajudar de alguma forma. Chamamos a senhora pelo nome, tentamos aferir a pressão, ligamos para o SAMU, avisamos a família. Mas parecíamos baratas tontas, tínhamos ideias a esmo e tentávamos colocar em prática. Até que o vizinho que falava com o paramédico pelo telefone informou que era a hora da massagem cardíaca.
Eu fiz as aulas de primeiros socorros na autoescola, vi muitos episódios de Grey’s Anatomy, mas a única coisa que me veio à mente foi a informação de que “Staying Alive”, dos Bee Gees, tinha o ritmo exato das compressões cardíacas. A bizarrice de cantar mentalmente uma música disco no momento em que uma senhora de 90 anos dava seus últimos suspiros não me escapou. Mas algum sentido aquilo devia ter, porque quando o médico do SAMU chegou, recebi a ordem de continuar a massagem.
Não adiantou muita coisa. Mesmo com as compressões, injeções de adrenalina e desfibrilador, a senhora se foi, sob o olhar de vizinhos bem intencionados, mas completamente inaptos para salvar a vida de alguém.
Não foi o meu primeiro contato com a morte. Já perdi pai, padrasto, avó, tios queridos, amigos mais novos do que eu. Já estive de luto mais vezes do que gostaria. Mas essas mortes não foram repentinas, não foram consequência de um acidente. A morte sempre foi generosa o suficiente comigo para alertar, avisar que estava a caminho. E mais: eu nunca estive presente na sala enquanto ela fazia seu trabalho.
Quando tudo acabou, dei dez passos no corredor até o meu apartamento e olhei para o meu marido perplexa. “Acabou. Ela morreu.”
Talvez perplexidade seja a palavra que melhor descreva essa sensação de perder alguém. É como um tombo no meio da rua. Você estava de pé e no segundo seguinte não está mais. Dói, machuca, pode exigir cuidados médicos, mas a perplexidade é a primeira coisa que vem à mente. Como isso aconteceu?
Joan Didion escreveu um livro inteiro - e sensacional - sobre isso. Em O Ano do Pensamento Mágico ela narra a experiência de presenciar a morte do marido à mesa de jantar. Depois de 40 anos de casados. Com a filha na UTI de um hospital em estado grave.
Eu comecei a escrever esse parágrafo dizendo que não poderia nem imaginar essa dor, mas apaguei em seguida, porque imagino sim. Aliás, eu a vivi. Sei que perder o pai não é algo que desafia a nossa lógica. Crescemos sabendo que vamos perdê-los um dia. Mas há algo de universal na morte, algo que todos nós sentimos quando perdemos alguém querido.
Perplexo, o cérebro começa a fazer associações descabidas. “Se eu tivesse feito isso, se tivesse feito aquilo, eu poderia ter evitado?” “Se eu fizer isso, exatamente do mesmo jeito que sempre fiz, será que ele volta?” “Neste mesmo dia, há um ano, ele ainda estava vivo. Será que ele sabia que em breve não estaria mais?”. “Será que doeu? Será que ele sofreu?”
“A vida muda rapidamente. A vida muda em um instante. Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina”.
Termina e quem fica precisa descobrir formas de continuar por aqui. Não só no sentido literal, mas no metafísico. Quem somos quando uma parte importante nossa vai embora? O processo de luto é fundamental para isso. E a palavra “processo” cabe aqui como uma luva. É preciso TEMPO.
Joan diz que “o sofrimento é passivo. O sofrimento acontece. O luto, o ato de lidar com o sofrimento, exige atenção”. Não sei quem me disse que eu deveria viver o luto por completo, para atravessá-lo e deixá-lo para trás. Sei que essa pessoa estava certa e errada ao mesmo tempo. É preciso viver o luto, mas é impossível deixá-lo para trás. Uma partezinha sempre fica. O tempo é aquele sabonete que elimina 99% das bactérias, mas 1% é persistente. Faz parte.
Lembro que durante o velório do meu padrasto eu tentava entrar na “vibe” certa, adequada ao momento. Lembro de olhar para o caixão e pensar “nunca mais eu vou te ver. NUNCA MAIS”. Todos me olhavam como se eu estivesse muito triste, mas na verdade, eu não sentia nada. Não sentia porque aquilo ali simplesmente não estava acontecendo. Como poderia?
Toda a cerimônia tinha algo de surreal: um toque de celular configurado com “Festa no Apê” tocando em um momento completamente inapropriado. A presença da mãe de uma celebridade internacional MUITO famosa que na época namorava uma atriz igualmente famosa e a tranquilidade da minha mãe ao me apresentar a ela dizendo: “ela é mãe daquele rapaz bonito, daquela banda que você gosta”. O calor, apesar de ser abril. A presença inabalável das minhas amigas do colégio. Minha família. O padre que não conseguia pronunciar o sobrenome do meu padrasto com medo de cometer uma gafe.
Hoje eu vejo que estava dissociando. Me apegava a detalhes completamente sem importância, até mesmo cômicos, para não ter que perceber o óbvio. A vida, como eu a vivi durante quase vinte anos, tinha acabado.
Quando, quatro anos depois, eu perdi meu pai, já estava “preparada”. A mãe do meu namorado na época me disse: “quando seu pai morrer, ninguém vai precisar te contar. Você vai saber”. Achei um papo meio místico, meio estranho, mas menos de 10 dias depois eu soube. Voltando do trabalho, virei uma esquina e soube: “meu pai morreu”. Ninguém me contou. Aliás, acho que ninguém precisou verbalizar. Estava feito.
Quando minha mãe abriu a porta de casa com a cabeça inclinada, provavelmente pensando em como me dar a notícia, eu já sabia. Deve ter sido um alívio pra ela. Acho que foi pra mim também. Com exceção dos segundos seguintes, quando eu sentei no sofá e simplesmente gritei até perder a voz, não fiz escândalo. Sofri com dignidade. Papai odiava reações extremadas. Era importante dar orgulho para ele.
Joan Didion também parece ter sofrido com uma dignidade nórdica, mas sem dúvida sofreu. Tentou reverter o tempo, esperou que o marido chegasse - como se não tivesse mudado de plano, só de cidade. Evitou lugares que lembravam a vida em comum, escreveu, registrou o que sentia. Mas concluiu: “sei que se quisermos viver, chega um momento em que temos que nos libertar dos mortos, deixá-los ir, deixá-los mortos”. A vida, ainda que completamente diferente, continua.
O Ano do Pensamento Mágico é triste, mas coloca a morte exatamente no lugar onde ela deve estar: paralela à vida. Assim, quando ela chegar, não vamos nos assustar tanto.
Curtinhas!
Eu amo esse senhor.
Você já ouviu falar na Corita Kent, freira que falava sobre criatividade?
Como o 7x1 quase acabou com uma editora.
As melhores crônicas vêm da observação do banal, como essa aqui do
.Um rolé pelo bairro que durante anos eu chamei de casa.
Um documentário para ver (e rever) a cada livro lido de Joan Didion.
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Eu te amo. Mas não gosto mais de você.
“Eu te amo, Dexter. Eu só não gosto mais de você”. Se você leu “Um Dia” ou viu o filme com a Anne Hathaway, provavelmente se lembra dessa fala. Ela marca uma ruptura na amizade de Dexter e Emma, os dois protagonistas, e sintetiza muito bem esses afastamentos que acontecem ao longo dos anos.
O que eu estou lendo?
Comecei esse texto minutos depois de ter terminado O Ano do Pensamento Mágico, logo ainda não tive tempo para começar outro. Estou aqui pensando em Monique se liberta, do Édouard Louis, mas talvez eu passe por um período de ressaca. Ao lado de Rosa Montero, Nora Ephron, Isabel Allende e Lygia Fagundes Telles, Joan Didion completou meu panteão de deusas-escritoras e vai ser difícil me desapegar dela. Alguma sugestão?
Que texto forte! Li segurando a respiração. A morte tem sido pensamento constante por aqui (por coincidência foi tema da minha última newsletter). Talvez escrever seja mais uma forma de tentarmos lidar com ela de maneira mais natural.
O ano do pensamento mágico, foi um dos livros mais marcantes que li nos últimos anos. Foi incrível ler como a Joan colocou em palavras tudo o que eu senti todas as vezes que atravessei o luto (ou ele me atravessou).