O feminismo não errou. Mas será que não dá para melhorar?
#115 Zero Pretensões e Sentimentos Aleatórios
A vida não é simples. Não é agora, não era antes, e com certeza não será no futuro. Mesmo assim a gente se ilude, se perde em nostalgias. Volta e meia me pego pensando na sorte que tive de ser criança e adolescente numa era pré-redes sociais. Fui idiota, óbvio, mas não há registros - apenas testemunhas que estavam ocupadas sendo idiotas também.
A vantagem parece enorme hoje, olhando em retrospecto. E talvez seja, de fato. Mas os anos 1990/2000 também foram uma época pré Jout Jout, pré vídeo Não tira o batom vermelho, que tanto fez pela minha construção como mulher. Uma época em que o modelo de beleza, no singular mesmo, era pouco saudável, em que a objetificação das mulheres (alô, banheira do Gugu!) começava bem cedo, em que a educação dos pais era física ou psicologicamente violenta (mesmo se eles estivessem tentando acertar). Ônus e bônus.
Dizer que “na minha época era melhor” denuncia a idade e diz muito sobre nossos joelhos e ciáticos, mas depois de assistir a melhor-série-dos-últimos-tempos-da-última-semana, é quase impossível não cair nessa armadilha. Estou falando, claro, de Adolescência, minissérie que estreou recentemente na Netflix.
Como ninguém é obrigado a acompanhar as novidades em tempo real, uma breve sinopse: Jamie é um garoto de 13 anos, acusado de assassinar uma colega de escola. Em quatro episódios - gravados em plano sequência -, acompanhamos a prisão de Jamie, suas consequências no ambiente escolar, o acompanhamento psicológico e a devastação da família. Tudo tecnicamente muito impressionante, e emocionalmente perturbador.
Temas como bullying, a hipersexualização das crianças e os perigos da internet estão lá. Racismo, masculinidade tóxica, negligência e tudo aquilo que faz com que nós, adultas sem filhos, queiramos ligar as trompas, também. Educar crianças, garantir que elas cresçam em um ambiente saudável, comam legumes e não falem com estranhos é difícil. Fazer tudo isso com a cara enfiada em telas, com a pornografia bombando, e a IA transformando qualquer coisa em deep fake, meu Deus, é opressivo.
Eu poderia dizer que assisti à série porque me interesso pela educação dos meus futuros filhos (e me interesso), ou porque gosto de produções filmadas em plano sequência (e gosto), mas em nome da honestidade que rege nossa relação aqui nesta newsletter eu confesso: dei o play mesmo pela fofoca. Queria entender se o feminismo errou ou não errou.
Vim pela fofoca, fiquei pelo debate, e essa é a beleza da coisa: ler três mulheres que admiro (Mariliz Pereira Jorge, Thais Farage e Djamila Ribeiro), compreender, concordar e discordar dos argumentos de cada uma, sem invalidar nenhuma delas.
O título da coluna da Mariliz é sim, um click-bait. Dizer que O FEMINISMO, no singular, errou é inflamar ainda mais uma discussão que já está exaltada. É um sorrisinho cínico que desafia as mulheres que se identificam como feministas a rebaterem. É colocar um grupo grande e diverso num único balaio. Isso posto, há certa razão ao dizer que frases como “todo homem é um estuprador em potencial” ou “o homem hetero tem que acabar” mais atrapalham do que ajudam.
Lembro que numa época tão, tão distante, pré-eleição de 2018, eu convivia com uma turma bem diversa. Um dos caras era de direita, contra o comunismo (o real e o ilusório), todo aquele discurso pró Aécio antes do Impeachment. Uma das meninas era de esquerda, feminista, progressista, um discurso 100% alinhado com o que eu acreditava. Só que era impossível conversar com ela. Inflamada, exaltada, indignada, muitas vezes ela não abria espaço para uma nuance, um tom de cinza, o que nos afastava do debate. Ironicamente, o diálogo fluía melhor com ele, tão oposto a tudo o que eu acreditava. Ninguém convencia o outro do seu ponto de vista, mas pelo menos era possível entender o sistema de crenças no qual cada um baseava suas opiniões. Essa convivência me fez entender o que se tornaria o bolsonarismo alguns anos depois. Duro, porém didático.
As palavras têm poder. E se nós temos um projeto de mundo melhor, temos também a responsabilidade de torná-lo mais acessível a todos. Estamos cansadas, eu sei. Mas também estamos tomando um banho da extrema-direita no quesito comunicação.
Ao contrário do que Mariliz disse, não estamos caladas, estamos sim, berrando há séculos para sermos ouvidas. Uma mulher teve a coragem de denunciar o estupro que sofreu e sua palavra não foi suficiente. Seu estuprador foi inocentado. Porque é rico, porque é famoso, porque é o Daniel Alves, porque é homem, sei lá. Somos silenciadas o tempo todo. Mas quando abrimos a boca, seria muito útil não tentar diminuir as conquistas até aqui.
As palavras têm poder, mas só funcionam se chegarem a quem precisa ouvi-las. Talvez esteja na hora de encontrar um jeito de dizer o que pensamos sem dar ao patriarcado o prazer de distorcer cada palavra.
Curtinhas!
Um vídeo que sintetiza a misoginia e os perigos da internet na adolescência.
Um bom podcast para quem quer se aprofundar no tema da série: esse episódio do Fio da Meada, com a juíza Vanessa Cavalieri.
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A biblioteca do Ignácio de Loyola Brandão.
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O que eu estou lendo?
Se você acredita em coincidências, vai achar curioso eu ter escolhido começar a leitura de Édouard Louis logo esse domingo, logo pelo Quem matou o meu pai. Se você acredita em destino, provavelmente vai pensar que eu preciso aprender algo sobre o tema da masculinidade tóxica.
Para ser honesta, peguei esse livro porque era o único que cabia na bolsa diminuta que eu decidi levar para tomar café da manhã com meu marido. Mas bastaram 10 minutos no restaurante para eu me encantar com a honestidade e a beleza de cada frase. Se um dia eu decidir colocar em palavras os relacionamentos conturbados que eu já tive na vida, sem dúvida vou me espelhar no Édouard.
E não custa lembrar: os livros que eu cito aqui nessa newsletter sempre vêm acompanhados de um link de afiliado da Amazon. Ao comprar qualquer item através desses links, eu ganho uma pequena porcentagem e você não paga nada mais por isso. Vamos ajudar essa que vos fala a adquirir mais livros e comentar sobre eles, em um ciclo sem fim de bons conteúdos na internet? :)
Muito sensata! É como respirar um ar fresco ler um texto equilibrado assim. Realmente não tem conversa com pessoas inflamadas - qualquer que seja sua ideologia. Num mundo de extremos, todo mundo perde.
Parabéns pelo texto !
Um de nossos colunistas fez uma análise política sobre a série. Compartilho, caso queira conferir:
https://substack.com/home/post/p-160643421?source=queue
Abraços