“Até doar os próprios livros pode ser perigoso. Nunca se sabe qual deles sustenta nosso edifício inteiro”. Clarice Lispector que me desculpe, mas precisei corromper sua frase famosa para explicar o que estou sentindo.
Nas últimas semanas, resgatei parte da minha coleção de livros que estava em uma casa fora do Rio. Nas caixas, encontrei algumas das minhas histórias preferidas da infância - alguém aí também era fã de “O Pequeno Vampiro”? -, livros anotados pelos meus pais, alguns volumes com dedicatórias, outros que eu juro que lerei em algum momento da vida e outros tantos que ajudaram a formar o meu caráter.
Poderia fazer o esforço hercúleo de convencer meu marido a abrigar todos em casa - tendo inclusive que investir em novas estantes? Poderia. Mas eu gosto do homem, sei que ele ainda está na fase de achar esse meu hábito ligeiramente acumulador um charme, e não gostaria de abusar da paciência desse santo homem. Então, selecionei alguns e separei para doação. Com o coração apertado, mas fiz.
Tirei da coleção os que eu já li, clássicos com uma tradução árida e ultrapassada, livros duplicados. Mas o que interessa mesmo é o que ficou. A coleção O Pequeno Vampiro, claro, eu mantive. Os de cinema e moda, lembranças de paixões antigas, ficaram também. A série do Luiz Alfredo Garcia-Roza, que meu pai fez ao longo de anos? Impossível me desfazer. Chatô eu juro, juradinho, que ainda pego pra ler. Gabo não dá pra doar, é até pecado. E aquele livro que eu ganhei de presente daquele ex, que nem valia tanto na época e hoje vale menos ainda (o ex, não o livro. O livro mantém seu valor). Fica, fica, fica.
Cada volume, cada parágrafo marcado, cada história lida (ainda que esquecida) é um tijolinho deste edifício que sou eu. Ligeiras imperfeições e defeitos graves não são de responsabilidade dos autores, mas também não vou limpar completamente a barra deles. Eles fazem parte de um conjunto que, para o bem ou para o mal, está aqui, respirando, escrevendo, interagindo com um mundo que, volta e meia, é muito mais legal na ficção.
Se eu escrevo hoje, por exemplo, vocês agradeçam (ou reclamem com) a Martha Medeiros e o Luis Fernando Veríssimo. Se tenho orgulho de ser latinoamericana, isso aí é com Gabriel García Márquez e Isabel Allende. Se amo ser brasileira, agradeçam ao Veríssimo (pai), Fernando Sabino, Rubem Braga, Marçal Aquino, Lygia Fagundes Telles. Ah, a Lygia. Que felicidade é ler qualquer coisa escrita por ela.
Meus medos também têm donos. Tenho horror a palhaços graças ao Stephen King, e Shirley Jackson me fez ter certeza de que um dia eu vou enlouquecer. Jon Krakauer me deixou permanentemente traumatizada com a ideia de escalar uma montanha e até hoje tenho aversão a qualquer tipo de aventura na natureza (minha mãe certamente agradece).
True crime é meu lado sombra, crônicas me fazem gargalhar antes de dormir e no meio da noite quando eu acordo de algum pesadelo. Poesias me fazem invejar quem as escreve, mas só se tiver rima. O que não tem, me incomoda. Clássicos fazem com que eu me sinta inteligente e ignorante, tudo ao mesmo tempo.
Na verdade, até o que eu não li compõe o que eu sou. Clarice espera pacientemente a hora em que eu vou ter coragem de lidar com ela de novo, Kafka sabe que a hora dele vai chegar, Dostoiévski já desistiu. Meus desejos de leitura também me constroem. Quero ser a pessoa que leu Thomas Mann, prefiro não ser a que leu (pela terceira vez) Colleen Hoover. Finjo que não li Crepúsculo e nem Cinquenta Tons.
Minha biblioteca diz muito sobre mim. E algumas coisas eu nem descobri ainda. Mas fico feliz de olhar as estantes e descobrir um universo inteiro de (auto)possibilidades.
Curtinhas!
Quem é leitor e porque somos tão poucos?
O impacto ambiental das ferramentas de IA.
Impossível não colocar esse livro na lista de leituras.
Se não for dela, eu nem sei, sabe? Fernanda Torres na Vanity Fair.
O filme mais aguardado do ano.
Esse lembrete delicioso de que nós somos capazes (e cercados de privilégios).
O que eu estou lendo?
Sigo mergulhada no Olá, querida, da Ann Napolitano, ainda tentando descobrir o que raios aconteceu na família Padovano. Como devo ficar nessa um tempo, decidi intercalar com outras leituras. Topam me ajudar a escolher?
E não custa lembrar: os livros que eu cito aqui nessa newsletter sempre vêm acompanhados de um link de afiliado da Amazon. Ao comprar qualquer item através desses links, eu ganho uma pequena porcentagem e você não paga nada mais por isso. Vamos ajudar essa produtora de conteúdo a adquirir mais livros e falar mais sobre eles, em um ciclo sem fim de bons conteúdos na internet? :)
To passando por isso tb 😖
Quando me mudei (saindo de Minas e indo para o Paraná),precisei me desfazer de alguns livros, foi bem difícil pq sentia que cada era um pedacinho meu.